A arte fortalece a luta

Transbordamentos simbólicos e desdobramentos políticos da arte indígena contemporânea como ponte para ampliar o panorama das artes no Brasil

“A cultura brasileira é um folclore, porque basicamente não existe uma cultura brasileira. A arte indígena não é cultura brasileira, ela é muito mais que isso. Ela é internacional, é cosmológica. Não tentem simplificar nossas produções, nossos pensamentos, nossas magias e feitiços para compor essa ideia de cultura brasileira.” Foto: Amazônia Real

Nós não somos uma moda, nós não vamos passar no ano que vem. Chegamos definitivamente para tratar das questões de identidade e ir além”, Esbell lança esta flecha como quem ocupa um território simbólico fincando a presença indígena de forma definitiva na arena da arte contemporânea. A fala que materializa a re-existência indígena dialoga com o pensamento filosófico de Krenak no sentido de reverter os rastros do eurocentrismo que se apoderou, ao longos dos séculos, não somente de obras, artefatos e subjetividades indígenas mas também das narrativas que compõem a história da arte.

Série Kanaimé, de Jaider Esbell. Bienal de São Paulo. Foto: Marcelo Camacho

Arte indígena contemporânea: ocupação, provocação ou armadilha?

“Quando fomos provocados a refletir sobre a tal da arte, tivemos que declinar de uma atitude cosmopolítica e fazer um pouco dessa política da cultura. Foi quando a gente foi saber que existia uma coisa que é o sistema da arte. E é claro que a gente não se viu lá dentro.”, aponta Krenak enquanto fala da sua inquietação diante da lógica ocidental que insiste em categorizar o mundo com a pretensão de quem se autoriza a definir aquilo que é ou não é arte, cultura, natureza.

“Selva Mãe do rio Menino”, de Daiara Tukano é o maior mural urbano pintado por uma artista indígena. “Os rios são os avôs, todo avô já foi menino e todo rio tem mãe.”, diz a artista convidada a produzir a empena de mais de 1.000m no centro de Belo Horizonte.

Obra de Sueli Maxakali exposta na Bienal de São Paulo. 2021.


“É totalmente razoável que uma pessoa que lê montanhas, gosta de conversar com rios, que aceita rolar com outros seres, experimentando as corredeiras e com a própria frequência da corredeira, criar canções. [Uma pessoa que] se relaciona com a mãe terra de uma forma tão folgada, tão instintiva e tão espontânea, fique fora dos vocabulários do que chamam de arte.”, provoca Aílton Krenak.

Obra “Xamã”, de Davi Kopenawa e Jaider Esbell na Bienal de SP. Foto: Amazônia Rela

Decretando a Bienal dos índios

Se faz sentido pensar que as revoluções nascem da necessidade, é bastante simbólico que na edição em que se comemora os 70 anos da Bienal de São Paulo, a mostra, que é uma das mais importantes da América Latina, tenha privilegiado as artes de povos originários. Entre instalações, performances, pinturas, esculturas e outras técnicas, artistas como Uýra, Sueli Maxakali, Denilson Baniwa, Gustavo Caboco e Daiara Tukano, além do próprio Esbell e Krenak, demarcam um território ainda hostil e em dívida diante de séculos de apropriação e apagamentos. Enquanto ampliam o imaginário coletivo sobre outros modos de fazer e de existir, os artistas e demais pensadores que se inserem no que chamamos de AIC – Arte indígena contemporânea abrem caminho para novas formas de pensar, produzir e consumir arte a partir de uma perspectiva indígena.

Em sete décadas, esta edição da Bienal conta com a maior representatividade de artistas indígenas de todas as edições e ainda assim, estamos falando de apenas 10% do total de artistas selecionados. Um dado interessante para pensar em como a cultura brasileira foi forjada a partir de narrativas à revelia dos povos indígenas, como pontua o antropólogo e pesquisador Pedro Cesarino. “O que chamamos de arte sempre foi mobilizado por transferências e sampleagens, e de certa forma, de saques. Os saques dos territórios, dos corpos, das formas de produção de sentido, dos conhecimentos dos povos indígenas são saques marcados pelo genocídio. Esse genocídio que ocorre há mais de 500 anos e que continua acontecendo não é somente um genocídio de corpos, é também um genocídio de ideias.”

“Entidades” é o título da obra de Jaider Esbell que representa o ser fantástico Îkîimî, que atravessa vários mundos e que não tem começo e nem fim. Na cosmologia Makuxi, a cobra está presente como força de cura, regeneração e transformação. Foto: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo.


Historicamente o sistema da arte opera num registro de saque em relação às populações originárias, reiterando uma pedagogia que afasta o sujeito indígena da produção de filosofias, estéticas e concepções de mundo. Paula Berbert, curadora assistente de Esbell na mostra Moquém_Surarî, chama atenção para novas estratégias de demarcação deste sujeito enquanto narrador de suas próprias existências e tradutor de suas próprias cosmologias. Como um feixe de luz multifacetado, esse reposicionamento do indígena como produtor de sentidos amplia o panorama das artes indígenas enquanto uma complexa plataforma de subjetividades que promete esquentar cada vez mais as discussões sobre “a tal da arte”, como se refere em tom ironicamente doce, o mestre Aílton Krenak.

Mulheres Maxakali e os Yãmiy. Foto: Sueli Maxakali.

Desmusealizando o museu

Foi no intuito de atender ao convite para assumir a da narrativa de si como forma de resistência frente aos silenciamentos que a artista Moara Tupinambá aceitou a provocação feita por sua prima, a museóloga Barbara Xavier, para participar da seleção para a residência artística do MAM-Rio. Uma Prosa (des)musealizada consiste numa troca íntima entre as duas, que se utilizam de cartas para autobiografar as diversas subjetividades que atravessam os corpos indígenas. O projeto da dupla utiliza cartas para refletir sobre identidade através de suas memórias e trajetórias e propor uma nova experiência de museu.

“Há dois anos eu vinha escrevendo muito mas dei uma parada. Tive um bloqueio, não sei explicar. Não queria mais falar de mim, não queria mais que as pessoas acessassem a minha vida, não queria ter que ter respostas.”, conta Moara, multiartista que desenvolve trabalhos em diversas linguagens que vão da colagem, passam pelo desenho até os murais. Além de sua produção artística, Moara ministra oficinas criativas, integra associações, atua como mediadora e gestora cultural, organiza coletivos, escreve, se reinventa e nessa trajetória, reinventa também seu lugar enquanto criadora de sentidos.

“Eu não sou acadêmica. Já existem os teóricos que vão falar sobre a desconstrução do museu, mas o que a gente quer mesmo é perguntar como transformar esse lugar em um espaço mais popular, com um sentido de existência. Como reconstruir este espaço trazendo as nossas e mais vozes a fim de tornar o museu um lugar vivo?”, questiona a artista.

Olhar ao redor e reconhecer projetos autorais protagonizados por corpos periféricos, não-hegemônicos como o de artistas como Brisa Flow, Gê Viana e Tom Grito (que também integram a residência 2021 do MAM-Rio), reitera a força das narrativas pessoais enquanto ponte ligando histórias, individuais e coletivas em transmissão e registros autorais e não como concessão ou como representação, mas como estratégia de ocupação.

“Esses museus, que colocam os indígenas num lugar de pessoas que não existem mais, reforçam o processo de apagamento das nossas identidades.” Ao longo da trajetória de se entender enquanto mulher indígena, elaborar a questão da racialização e outras camadas de violência que conheceu ao longo da jornada, Moara precisou voltar à comunidade tapajoara de Cucurunã, em Santarém, no Pará. O Museu da Silva, pesquisa que parte do sobrenome que serviu para homogeneizar identidades e transformar os “da selva” em “da Silva”, se desdobrou em outros projetos, entre eles, o de um podcast que estreia ainda este ano.

O processo de desconstrução do museu é um tema caro à Moara que entende o questionamento como uma discussão necessária e urgente. “Tem artefato do povo Tupinambá por tudo que é canto do mundo. É um povo que foi muito falado, muito escrito e também um dos povos mais roubados desde a época da invasão. “, lembra a artista.


“É preciso questionar esse lugar do museu, que muitas vezes nem é compreendido por nós. Que lugares são esses que pegam e tomam aquele material como posse e não abrem para as próprias pessoas, que são daquela origem, terem acesso?” Foto: Arquivo pessoal Moara.