Para Abrir Mundos

Nunca sabemos ao certo quanto tempo dura um brilho. Quando reconhecemos um feixe luminoso diante dos nossos olhos, seja ele simbólico ou em forma de corpo celeste, há uma tentativa vã e instantânea de apreender o espanto. Profundamente tocados e ainda perplexos com o encantamento do cometa Esbell, nosso Observatório de hoje é uma homenagem a essa flecha afiada e encantada chamada Jaider Esbell.

Ao longo deste texto escrito com base em anotações de aulas, ensaios e trechos de publicações e entrevistas, trazemos falas de Jaider com o intuito de propor uma aproximação de mundos seguindo o convite que ele sempre fazia na direção da escuta, do exercício da percepção aguçada, do diálogo. E também do questionamento, da quebra de paradigmas, do deslocamento de conceitos, de corpos, de existências.

Como um corpo que demarca seu espaço neste plano conectado a muitos outros mistérios ancestrais, o artista, ativista, escritor, pesquisador e pensador provocou transformações fundamentais no campo da arte contemporânea ao longo das mais de duas décadas de pesquisas e vasta produção artística. Revoluções que podem ser acessadas à medida em que abrimos os portais da cosmopolítica que Jaider defendia. A ideia de cosmopolítica, de modo geral, dá conta daquilo que está para além da lógica ocidental, para além do visível, para além da categoria, do título, do enunciado, do catalogado. Considera toda uma rede de saberes e fazeres não enquanto representação ou folclore mas como outras possibilidades de compreender e estar no mundo.

“A arte indígena contemporânea(AIC) está exatamente nisso, nessa capacidade literal de interagir com a ideia de além. Como é que essas coisas nossas vão caber no sistema fora da AIC? Digo que nunca caberão pois não é mesmo para caber. Esse saber é para o tempo aberto, para onde as pessoas de hoje já não olham mais. Isso não é coisa do passado. Passado para nós nunca vai existir, assim como a ideia de futuro ou outro tempo senão o eterno.”

Coleção It Was Amazon reúne 16 desenhos em Canson preto retratando uma Amazônia seriamente comprometida, assim como nosso futuro comum.

Na insistência de conectar mundos, Jaider habitava um entremundos e fazia da sua existência ponte, testemunho e criação de novas realidades e sensibilidades. Quem quiser embarcar nessa canoa que corra, que lute, que ouça. Sempre é tempo de aprender e o tempo agora é cada vez mais urgente. Para Jaider, sempre foi. Para nós, precisa ser. Assumir essa luta anticolonial é uma pista que o privilégio de dividir o mesmo tempo-espaço com um pensador como Jaider Esbell nos mostra com clareza.

“Esse tempo presente é a última chance que temos para celebrar a vida, a vida com dignidade para todos; homens, animais, minerais, espíritos. Essa carta tem a intenção de convidar toda a humanidade para pensarmos juntos o futuro comum de nossas próximas gerações e isso é mesmo urgente. Eu de minha parte represento, em uma leitura poética, profética, a última ligação dos seres humanos com a essência da natureza, ou seja, a vida em sua origem. Eu também represento o pensamento dos anciãos de toda a terra e não devemos suportar por vocês essa grande guerra, sozinhos. “
(Carta dos Povos indígenas ao Capitalismo, 2019).

Esbell em performance na exposição “Apresentação : Ruku” na Galeria Millan, em São Paulo. Foto: Renata Chebel / Galeria Millan


Suas obras, sejam pinturas, desenhos, ensaios ou performances, são parte de relatos íntimos manifestados com todo o acúmulo de camadas coletivas dos que vieram antes sobrepostas a uma expressão autoral. “Adianto que não ando só, que não falo só, que não apareço só. Faço saber que toda a visualidade que me comporta, todas as pistas já expostas do meu existir são meramente um passo para mais mistérios. Somos por nós mesmos o poço de todos os mistérios. “ (Makunaima, o meu avô em mim, 2018).

Os desdobramentos de suas diferentes linguagens artísticas contém importantes chaves para a desconstrução e decolonização de conceitos como arte, cultura, ativismo, afeto. Tradição, ancestralidade, território, linguagem. Tecnologia, epistemologia, produção de sentido e de conhecimento. “Os povos indígenas têm seus próprios sistemas de arte, com seus próprios fundamentos, razões, pressupostos, intensidades.”

Arte indígena contemporânea foi o nome sob o qual Jaider organizou a pluralidade de artistas indígenas para uma autoapresentação de forma definitiva, demonstrando que os sistemas indígenas podem ser extremamente sofisticados e que estão em plena produção muito antes da colonização ou do estabelecimento do circuito das artes pelo viés do eurocentrismo. Inaugurar um movimento artístico tem em si uma prerrogativa de provocar, de instigar, de “esticar a realidade”, como fazia Jaider com toda a paciência que ele tinha para interagir fosse com seus alunos, com as instituições e com o público em geral. AIC é uma forma de reunir e celebrar outros artistas enquanto corpo autoral, comum e produtor de sentido. A Arte Indígena Contemporânea – ou cosmopolítica, chega para propor um levante, para denunciar enquanto anuncia novos tempos. “Nós indígenas não somos uma moda, nós não vamos passar no ano que vem.”, afirmou como quem finca uma bandeira não só nos museus e galerias mundo afora, mas nas subjetividades dos que cruzavam seu caminho.

Equilibrista de mundos dissonantes, Jaider atuava num constante contra-ataque pela via da educação. Os olhos inquietos, que pareciam às vezes mirar o invisível, transbordavam o incômodo de ter de fazer uso de uma pedagogia sistemática para relembrar violências e apagamentos históricos de forma a revelar ao público a trajetória tanto do sujeito indígena Macuxi quanto dos povos indígenas em sua coletividade. Jaider nos convidava a deixar morrer e renascer ideias, instaurando novos paradigmas enquanto remexia em feridas abertas em busca de novas poéticas.

Foto: Daiara Tukano


“A arte é uma batalha de se manter estrategicamente rebelde, já que as autonarrativas são um privilégio para poucos. Achar um jeito de penetrar na epistemologia a partir de uma autonarrativa é uma contra-narrativa, uma prática decolonial.”

Leva um tempo para perceber que o espanto é uma provocação do instante e que como tal, o que nos resta é procurar manter aberta nossa escuta, nossa sensibilidade para receber o que se apresenta. Jaider Esbell ancestralizou há poucos dias ao fazer sua passagem para o invisível oferecendo a nós uma fresta para experimentar outras vivências. Agradecemos pela oportunidade de vê-lo abrir caminhos no meio do mato alto da contemporaneidade, num exercício profundo e político de juntar as pontas deste tecido sensível que nos cobre enquanto sociedade. Seus feitiços em forma de prosa, pintura, desenho, performance seguem ressoando como ecos de encantaria. Viva Jaider Esbell vivo sempre.