Artesãs e artistas indígenas utilizam matérias-primas diversas, seja de origem animal ou vegetal, para a confecção de seus artefatos e utensílios. Entre todas, uma desperta especial interesse e curiosidade, por sua origem manufaturada e poder de sedução: as preciosas miçangas.
As miçangas são tão contemporâneas quanto antigas. Incorporadas nas principais manifestações estéticas e rituais de vários grupos indígenas, as miçangas são apreciadas por sua diversidade de cores, tamanho, formas, qualidades de brilho e durabilidade. Assim como a pintura corporal e a ornamentação com dentes, conchas, penas e sementes, o uso da miçanga está essencialmente ligado à corporalidade, aspecto central na constituição da identidade entre esses e outros povos tradicionais.
A história das miçangas nos remete a tempos e lugares longínquos. Elas teriam aparecido na Ásia Ocidental, na região do Cáucaso, na Mesopotâmia e no Egito, em torno de 2340 A.C. Foi no Egito, em torno de 1350 A.C., onde funcionou a primeira fábrica, patrocinada pelos faraós. Assim, as contas de vidro se tornaram rapidamente acessíveis à população com certo poder aquisitivo.
Os romanos também passaram a produzi-las e as usavam no escambo em regiões por eles conquistadas, como valiosa moeda de troca. Enquanto a elite do império usava jóias de materiais preciosos, as contas de vidro eram usadas pelo povo comum, nativos e imigrantes.
Entre 330 e 1400 D.C, existiam diversos centros de produção de miçangas no Norte da Europa. Na Idade Média, entretanto, a Igreja Católica começou a desestimular a produção de bijuterias feitas de contas, condenando-as como costume pagão. A retomada das voltas de contas pela Igreja se dá através do uso do rosário, costume de origem hindu, que ocupa um lugar central nas religiões orientais, assim como no Islã, tendo sido também rapidamente incorporado na cristianização do Novo Mundo.
É na Renascença que acontece o revival das contas de vidro, uma produção voltada para a exportação. As contas de vidro caíram no gosto dos povos recém-contatados das Américas, enquanto a corte europeia usava pedras e materiais
preciosos vindos de suas colônias. A técnica de produção de vidro era desconhecida e, se as miçangas não passavam de quinquilharias para os europeus, por outro lado, eram vistas como preciosidades exóticas pelos diferentes povos indígenas, verdadeiras “pérolas de vidro”. Isso ocorreu também na África, como podemos ver entre os adornos típicos de tantas tribos, como no caso abaixo, de etnias semi-nômades do norte do Quênia.
Atualmente, as miçangas mais cobiçadas são produzidas na República Tcheca, as famosas jablonex, feitas de vidro e de qualidade superior às chinesas. Este processo de transformação de algo exterior em algo interior, com valor ritual e uma lógica local e particular, estilisticamente controlada, que produz uma diversidade de manifestações estéticas as sociedades. Uma multiplicidade de formas, desenhos e técnicas, apropriando-se de uma matéria-prima estrangeira no fazer tradicional.
Se as miçangas foram apropriadas pelos povos indígenas desde os primeiros contatos com os viajantes, vemos que hoje ela retorna para o mundo do branco, na moda e no design. As miçangas tecem caminhos entre mundos e através delas podemos pensar a relação entre os mais diferentes povos.
* Este texto tem como fonte uma resenha baseada no artigo “No Caminho da Miçanga: arte e alteridade entre os ameríndios.” de Els Lagrou, publicado na Revista Enfoques dos alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. Disponível em:http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1.
Outras Referências Bibliográficas:
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Lagrou, Els. 2013. “Um corpo feito de artefatos: o caso da miçanga”. In Cahiers d’anthropologie sociale. Collège de France.
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