“Índio usando miçanga europeia?” Pode causar estranheza, mas a resposta é sim e há muito tempo! Para entender melhor a relação entre essas continhas de vidro e o artesanato indígena, recorremos a pesquisa da antropóloga Els Lagrou*, que mostra como as famosas contas de vidro eram trocadas com os viajantes desde as primeiras expedições europeias para as Américas.
“As miçangas são verdadeiras “pérolas de vidro” (…) e parte do escambo entre colonizadores e populações nativas, em que constatamos, desde o começo, um desencontro de perspectivas de valor. Os viajantes e colonizadores achavam estar trocando quinquilharias por preciosas matérias-primas, enquanto os nativos apreciavam muito estas contas de vidro, cujo modo de produção e origem desconheciam.”
As miçangas eram trocadas por sementes e os adornos indígenas, passavam assim, a serem confeccionados com as contas coloridas vindas da Europa. Mas nem por isso, a incorporação dessa nova matéria-prima significava “perda de identidade”, e sim, uma capacidade de ressignificação deste material novo dentro da tradição, técnicas e costumes indígenas.
“O tratamento dado pelas diferentes sociedades indígenas à miçanga constitui uma manifestação privilegiada desta estética da pacificação do inimigo, porque a grande maioria das populações indígenas usa miçanga e a incorpora nas suas manifestações estéticas e rituais mais significativas. Contra uma abordagem purista que via na miçanga um sinal de poluição estética resultante da substituição de matéria-prima extraída do ambiente natural por materiais industrializados, partimos da própria concepção estética ameríndia para ver como objetos, matéria-prima e pessoas são por eles domesticados e incorporados através do processo da tradução e re-significação estéticas.”
Movidos pela curiosidade sobre as melhores miçangas do mundo, fomos até uma fábrica em Zasada, uma cidadezinha na República Tcheca, para ver de perto a produção daquelas contas de vidro colorido que viram arte nas mãos das sábias artesãs indígenas. Depois de algumas horas de carro partindo de Praga, chegamos ao nosso destino. Construída numa região afastada, onde quase ninguém fala outra língua senão a local, a fábrica funcionava a todo vapor, produzindo centenas de milhares de contas, de todas as cores, tamanhos, acabamentos e tipos.
Já que não tínhamos autorização para acompanhar de perto todas as etapas da produção, fomos até a lojinha, e compramos pequenos lotes de miçangas recém-produzidas. De volta ao Brasil, apresentamos o material para Panhgroti, Nhakraê , Kokprin e Nhakê Kayapó, artesãs e parceiras de longa data da Tucum. A animação dos olhos de cada uma ao ver contas tão diferentes era como a nossa, lá na República Tcheca, escolhendo quais miçangas traríamos no meio de tanta variedade. Ali nascia a nossa coleção incidental Zasada, com curadoria da Tucum e técnica Kayapó.
A coleção traz uma identidade muito forte expressa em doze colares, em modelos exclusivos, feitos artesanalmente a partir dos saberes Kayapó. Diversa, versátil e exclusiva, a coleção Zasada é mais uma parceria da qual temos muito orgulho. Baseada na troca de saberes, a Tucum veio com o estímulo e as artistas Kayapó com toda sua inventividade, empolgadas com a possibilidade do novo, provando o que por aqui já sabemos há tempos: que arte indígena nada tem de estática, pelo contrário, é extremamente dinâmica. E que ser tradicional não tem relação com ser parado no tempo, mas com deter saberes únicos, passados de geração em geração para apropriar-se do novo desta forma única e genuinamente brasileira. Acesse e conheça a coleção Zasada e a arte Kayapó!
*Els Lagrou é Antropóloga, professora do programa de pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA, IFCS, UFRJ), bolsista do CNPq, membro do Grupo internacional de pesquisa do Musée du Quai Branly, Paris, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Arte, Imagem e Pesquisa Etnológica (NAIPE) do PPGSA/UFRJ.