Resgate, força e beleza nas cerâmicas do Alto Rio Negro

A região conhecida como “cabeça de cachorro” abriga populações originárias há milênios revelando em suas artes a delicadeza e a mítica de saberes ancestrais

O Alto Rio Negro possui uma rica variedade de objetos e artefatos que compõem a cultura material de cerca de 23 povos que compartilham este território na fronteira do Brasil com a Colômbia. Dentre este repertório estão as famosas cerâmicas Baniwa e as cerâmicas Tukano, ambas com suas características e especificidades únicas, que nos mostram as infinitas possibilidades da matéria-prima do barro e suas variadas aplicações na cultura de cada povo.

Cerâmica Baniwa. Foto: Claudio Tavares / ISA



Cerâmicas Baniwa: retomada de uma arte ancestral

Para os Baniwa, etnia da família linguística Aruak, o rio Içana é o local de onde seus ancestrais míticos vieram trazendo os saberes para seus povos. A cerâmica ou akhepa na língua baniwa, é uma dessas práticas e sabedorias que resistiram de geração em geração. Tradicionalmente são as mulheres baniwa do rio Ayari que através de um conjunto de técnicas milenares produzem as famosas peças brancas consideradas a marca da cultura material dos povos Aruak. Ricas em ornamentação gráfica, estas cerâmicas são preparadas para uso cerimonial, sobretudo em rituais como o dabucuri (poodali) e o ritual de iniciação (kowaipan). Em ambas as ocasiões, os alimentos e bebidas são servidos nestas cerâmicas em formas de tigelas, bilhas, taças e moringas. São peças claras com pinturas alaranjadas que contrastam com a cerâmica preta e pinturas em negativo produzidas pelas mulheres dos povos Tukano.

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Segundo Braulina Aurora Baniwa, graduada em antropologia pela UNB com uma extensa pesquisa sobre os saberes femininos Baniwa, o diferencial na produção de akhepa é saber fazer bem a mistura. As terras que podem ser usadas para o preparo da massa de argila possuem cores variadas como amarela, branca e vermelha. Para dar a consistência correta para a mistura, as cascas de árvore do caraipé (kawa, em Baniwa) são utilizadas no preparo que deve ser feito por uma mulher que já teve filhos, segundo a tradição. O preparo bem feito facilita o acabamento e a aplicação das pinturas de sílabas gráficas, realizadas com o pigmento resultado de uma argila amarela (eewa) com um líquido ácido, que vem do caldo de mandioca amarga (manicoera), do suco de limão ou do suco do cubiú. Aplicados usando delicados pincéis construídos com mechas dos cabelos das jovens ceramistas, os desenhos são feitos antes da queima no interior ou exterior dos potes, de acordo com o tipo e o uso.

É apenas após a queima que a cerâmica ganha a cor clara e os pigmentos as cores alaranjadas. O acabamento vitrificado é produzido através de resinas vegetais, como o arbusto oomapihitako ou a seiva do jutaí (wakhamaali), planta da família do jatobá. A peça polida, com pedras ou sementes próprias de cada artesã, recebe a resina e é aquecida em uma segunda queima cuidadosa para que funcione como um esmalte que protege a peça do desgaste provocado pelo uso.

Dona Nazária Fontes, ceramista baniwa presidente da UMIRA, em novembro de 2018.
foto: Natalia C. Pimenta / ISA


Segundo a tradição Baniwa, desde jovens as mulheres devem acompanhar a coleta do barro, conhecendo os igarapés e os momentos que são adequados para tal. Assim, tanto a estação do ano como o estado das mulheres devem ser observados para que o barro seja propício para a realização das peças. As artesãs contam que as mulheres devem “estar bem consigo mesmas neste momento, sem raiva, estresse nem no período menstrual”, constituindo um processo que também dialoga com o cuidado do corpo feminino. Se as orientações não são seguidas, as produções podem quebrar na hora da queima, a pintura se espalhar ou o tom da cor não ficar definido.

O conhecimento da cerâmica pertence ao que os Baniwa chamam de weronaipemi wanekhe (conhecimento ancestral/ dos avós) e deveria ser mantida e transmitida para as novas gerações, dentro das comunidades, envolvendo a formação coletiva e individual da pessoa baniwa. No entanto, a cerâmica deixou de ser utilizada no cotidiano da cozinha no momento em que as panelas e os utensílios de metal começaram a chegar nas casas da população baniwa a partir do contato com os missionários, provocando uma ruptura na transmissão do conhecimento da arte da cerâmica branca e um quase completo esquecimento sobre o extenso vocabulário das pinturas. Preocupados com este cenário, em 2014 um grupo de ceramistas baniwa representadas por Nazária Fontes, Carolina Andrade e Maria de Lima, foram convidadas a visitar o acervo etnográfico, do Museu do Índio, com mais de 100 peças coletadas por colecionadores que estiveram na região do Alto Rio Negro ao longo do século XX, como Gastão Cruls e Eduardo Galvão.

As artesãs estudaram detalhadamente os objetos, podendo assim recuperar os saberes ancestrais resguardados nesses artefatos. E deste encontro uma oficina foi realizada com o objetivo de produzir uma nova coleção para o Museu, trazendo novas peças para o acervo e retomando a cadeia produtiva da cerâmica para ceramistas de São Joaquim, Médio Ayari (AM).

Neste mesmo caminho, para que tal conhecimento fosse repassado às jovens, através da rede de pesquisadores indígenas da bacia do Rio Içana, foi organizado um encontro entre as mestras ceramistas, conhecedores locais e pesquisadores indígenas através de iniciativa do ISA e FOIRN. O encontro buscou desenvolver os conhecimentos relativos às técnicas de elaboração dos padrões gráficos tradicionais da cerâmica branca e também debater os desafios para a comercialização desta produção em escala regional e nacional. Gracimar Lopes, comentou:

”Hoje os espaços como esse são importantes para nós adolescentes, por que nascemos e vivemos com utensílios de cozinha industrializados, não temos oportunidade de aprender estes conhecimentos em nossas casas com nossa família”



O resgate dos saberes com a cerâmica Negra Tukano

Os povos que vivem às margens do Rio Uaupés e seus afluentes – Tiquié, Papuri, Querari e outros menores – participam de uma ampla rede de trocas e alianças compondo um conjunto sócio-cultural comumente chamado de “sistema social do Uaupés/Pira-Paraná”, que inclui casamentos, rituais e comércio. Ao todo são 17 etnias falantes de línguas da família Tukano Oriental, com exceção dos Tariana, com origem Aruak.

Vizinhos dos Baniwa, as cerâmicas Tukano também começaram a ser substituídas por utensílios de metal com a chegada dos missionários salesianos no início do século XX. Produtos industrializados como terçados, bacias, espingardas, anzóis e panelas de alumínio eram moeda de troca por mão-de-obra indígena para a construção das missões da região. Assim, as mercadorias dos pehkasã (não indígenas, em tukano) tomaram o espaço dos utensílios cerâmicos no cotidiano dos espaços de preparação de alimentos.

Panelas Tukano feitas em Taracuá, durante oficina de produção de cerâmica realizada em 2017. Foto: Moisés Baniw a / Rede Wayuri


No início dos anos 2000, as próprias associações locais na bacia do rio Uaupés, por iniciativa das mestras ceramistas de Taracuá (rio Uaupés, AM), criaram uma das primeiras associações de mulheres indígenas, a AMIRT, cujo propósito central é promover a circulação de conhecimentos usados na produção cerâmica para jovens aprendizes. Disseminando o conhecimento e aumentando as possibilidades de produção e renda para as famílias, o resultado dessas ações de fortalecimento cultural das mulheres tukano tem sido a estruturação de uma importante cadeia produtiva no noroeste amazônico.

A cerâmica tukano é caracterizada pela coloração escura e o processo da pintura em negativo. Para produzir esse efeito há duas etapas de queima, uma antes e outra depois de desenhar os símbolos gráficos. O desenho é feito com argila úmida sobre a peça que já passou pela primeira queima. A argila fresca protege a superfície da peça nesta segunda queima, que é uma defumação intensa feita com cascas de árvores que conferem às peças a coloração preta. Após toda a peça ficar escura, as mulheres raspam a argila dos grafismos aplicados, revelando os padrões gráficos.

Para a presidente da AMIRT (Associação de Mulheres Indígenas da Região de Taracuá), Maria Suzana Menezes Miguel, da etnia Pira-tapuya, “com a venda da cerâmica, as mulheres se sentem mais independentes e incentivadas a trabalhar sua arte e gerar renda para suas famílias”.

A Tucum, em parceria com a Wariró/Foirn e o ISA, comercializa as cerâmicas do Alto Rio negro valorizando seus saberes e apoiando a cadeia produtiva das artistas da região.



Fontes e referências:

No Alto Rio Negro, mulheres indígenas ceramistas lutam por sede própria:
https://amazonia.org.br/2019/06/no-alto-rio-negro-mulheres-indigenas-ceramistas-lutam-por-sede-propria/

O passado e o futuro por meio da cerâmica Baniwa: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-rio-negro/o-passado-e-o-futuro-por-meio-da-ceramica-baniwa

Mulheres indígenas da bacia do rio Uaupés (AM) revitalizam produção de cerâmica tradicional: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/mulheres-indigenas-da-bacia-do-rio-uaupes-am-revitalizam-producao-de-ceramica-tradicional?utm_source=isa&utm_medium=&utm_campaign=&fbclid=IwAR1PnzIzn9DuqCAFIBUddTI7T-LcOd8Bc4mnhiVXIjVvQ4gR0yMREsplXZA

Braulina Aurora. O desafio sociocultural de mulheres baniwa na contemporaneidade: análise e reflexão sobre as práticas de saberes indígenas, formação, educação e cuidado com o corpo. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade de Brasília.


Vídeo:

Dekai Inaro Yanhenke – A Arte das Mulheres Baniwa / The art of the Baniwa Women https://www.youtube.com/watch?v=NyWYsT1vT2w

Frame do filme que acompanha todo o processo de artesãs na colheita, acomodação, queima e acabamento da argila até o produto final.