A arte das mulheres Xikrin e suas novas criações no contexto da pandemia

Artistas Xikrin na produção das telas com grafismos tradicionais de seu povo. Ngreimê, Bekwynhká, Ngrendjãm, Ngrentuti, Irekoti de costas e na sequência Kokoró. Foto: Rochelle Foltram/ABEX.

Neste segundo texto sobre as mulheres Mebêngôkre-Xikrin, apresentamos um pouco do processo criativo das artistas indígenas, a retomada de saberes ancestrais de seu povo diante dos desafios impostos pela pandemia e como estas iniciativas se vinculam ao protagonismo feminino e aos impactos positivos nas comunidades como um todo.

– por Júlia Sá Earp*

“Eu aprendi a fazer a pintura desde pequena nas bonequinhas de barro, aprendendo a fazer. Quando crescemos e temos filhos a gente pinta os filhos. Agora começamos a fazer as pinturas em tecido. Quando eu boto lá eu penso que pintura eu vou fazer. A pintura que eu mais gosto é a do jabuti. Quando eu boto e me lembro. ” Irekoti.

“Eu aprendi a costurar, máscara, bolsa. Vestido eu também costuro.” Kokôró Xikrin. Foto: Rochelle Foltram/ABEX.
“Aqui na Terra Indígena Trincheira Bacajá tem 20 aldeias mas só 11 começaram a pintar. Já são 100 menire no total. ” Kokonã Xikrin. Foto: Rochelle Foltram/ABEX.


Irekoti, Kokoró e Kokonã são três das nove mulheres do projeto “Menires”. As telas e tecidos pintados com os grafismos Kayapó ficaram famosos de um tempo para cá, despertando interesse em artistas não-indígenas e empresas de moda. Na Tucum, as telas e quadros com grafismos são dos artigos mais vendidos. Mas nem sempre foi assim.

A pintura dos grafismos em tecidos teve início em 2014 entre os Mebêngôkre-Xikrin. Antes disso, esta prática não era comum nas aldeias e os grafismos eram aplicados com jenipapo apenas em seus próprios corpos, em um processo tradicional de ornamentação e construção de corpos belos, seguindo preceitos fundamentais da sociedade indígena. A antropóloga Lux Vidal (1991) é uma das principais referências neste assunto e afirma que para além da ornamentação, a pintura dos grafismos constituem práticas que constroem sujeitos fortes e belos através da sobreposição de desenhos ao longo dos anos e períodos da vida. Ou seja, além de enfeitar, cada ritual de pintura materializa forças fundamentais da cosmologia de cada povo.

Os primeiros traços pintados em tecidos tinham a ondulação do corpo, não acabando na borda do tecido. Essa observação, feita pela Luciana Lima demonstra o fazer artístico em processo de adaptação onde o tecido passa a substituir neste caso, o próprio corpo ou o corpo dos filhos e parentes. Hoje em dia os tecidos, além de se transformarem em verdadeiras obras de arte pelas mãos das menire, também são utilizados pelas meninas mais novas como superfícies que permitem o treino dos desenhos tradicionais assim como o esboço das bonecas de barro (“mekurere”).


Ao trabalharem diretamente com as mulheres, Rochelle, Sâmya e Luciana vêm enxergando um caminho de valorização da cultura e de seus territórios pela via do cuidado e dos saberes ancestrais. Basta observar o modo de organização nas atividades dos projetos de artesanato e óleo de babaçu para que se perceba o cuidado e a forma justa de lidar com a divisão dos materiais e da renda, respeitando grupos familiares e a dinâmica tradicional mebêngôkre.

“O grupo que vai pra roça é o mesmo grupo que produz junto a pintura. A relação da avó com a neta que pinta é um momento de troca, de aprendizado de conhecimentos. A forma de estrutura do coletivo para a produção de mantimentos é a mesma, é circular, é uma estrutura social feminina do coletivo Jê que pode ser observada nesses momentos”., explica Luciana.

O projeto de costura teve início em 2014. De maneira bem pequena, sem verba para a contratação de consultorias de costura, a solução para aprenderem a usar as máquinas de costura foi utilizar vídeos e fotos de passo-a-passo. E foi assim que os primeiros vestidos costurados nas aldeias Xikrin foram feitos, com alguns moldes de papel, muitos vídeos, habilidade manual inegável, e o mais importante: o olhar e a escuta que captam os mínimos detalhes para aprender um novo saber. Fazendo sempre o melhor que podem para que tudo fique “mejxkumrejx”– que expressa a maneira bela e correta segundo o modo de vida mebêngôkre.

Segundo Rochelle, a renda mensal por artesã varia entre mil e mil e duzentos reais, que são gastos não apenas com celulares, televisões e outros bens fundamentais para elas, mas também no investimento da saúde dental das crianças e na segurança alimentar das famílias. Esta geração de renda corresponde ao fortalecimento da comunidade como um todo e reverbera o sentido de cuidado e proteção que as mulheres possuem e desempenham em suas aldeias.

Durante o ano de 2020 as atividades ficaram paradas devido a pandemia. Entre abril e maio do ano passado foi constituído na região do médio Xingu um comitê de enfrentamento ao covid voltado aos povos indígenas e tradicionais, estabelecendo medidas preventivas de atuação. Frente ao cenário de escassez, o papel das mulheres mais uma vez saltou aos olhos da comunidade e dos órgãos de apoio. A questão pragmática do cuidado e da nutrição ficou em evidência quando as mulheres reativaram roças para solucionar a dificuldade de mantimentos da cidade e propuseram novos produtos como as máscaras protetoras.

Com as barreiras sanitárias e as equipes da saúde em campo, as artesãs das aldeias começaram a notar que as únicas pessoas que usavam máscaras eram as enfermeiras que as atendiam. Luciana então recebeu uma mensagem de uma das mais habilidosas costureiras mebêngôkre falando que queria costurar umas máscaras para elas venderem. A partir de diálogos através do whatsapp, com apoio da tecnologia instalada na Base de Proteção da FUNAI próxima a aldeia, as trocas para a construção desse projeto tiveram início por fotos, referências e vídeos de passo-a-passo. Assim, uma leva de materiais específicos para a produção com o apoio financeiro TNC foi enviado à aldeia e em 10 dias as menire já estavam fazendo uso das máscaras produzidas por elas próprias e enviando uma grande produção de máscaras com os belos grafismos, nomes e diversas outras adaptações. Foi um sucesso completo! As vendas foram realizadas apenas na região de Altamira, e em dois dias o estoque esgotou. Toda a verba foi revertida em insumos para as aldeias conforme pedido das mulheres, em razão da pandemia.

Com o entusiasmo de uma inovação bem-sucedida, Luciana, Rochelle e Sâmya acreditam que em breve a Abex terá novidades vindas das mulheres Xikrin pois cada vez mais mulheres e demais aldeias querem fazer parte desta rede gerando renda para suas famílias. Assim, o foco atual da Organização Indígena Xikrin é possibilitar a gestão e o fortalecimento da produção interna nas aldeias, priorizando a autonomia e a instrumentalização delas para as atividades. Com esse foco, novas células de produção foram instaladas e em breve as mulheres poderão contar com mais máquinas de costura.

A Tucum tem orgulho em ser uma das parceiras deste trabalho das mulheres Xikrin e suas organizações neste caminho firme, de pontes e possibilidades entre os dois mundos. Iniciativas como esta fazem parte da nossa missão, de apoiar o fortalecimento, a visibilidade e a autonomia de mulheres que sabem caminhar com suas próprias pernas e têm no olhar seus próprios saberes.

*Júlia Sá Earp é Designer, ceramista, doutoranda em Antropologia pelo IFCS-UFRJ e mestra em Arquitetura e Urbanismo pela PUC/RJ. Colaboradora da Tucum em diferentes frentes, nesta entrevista traz seu olhar que entrecruza os referenciais teóricos e os aprendizados de suas vivências indigenistas. Desenvolve pesquisa acadêmica sobre a produção estética-política das mulheres Mẽbêngôkre-Kayapó.