Diálogos Tucum – Sandra Benites

Na estreia da nossa seção “Diálogos” aqui no blog, conversamos com a antropóloga, arte-educadora e artesã Sandra Benites. Um papo inspirador sobre narrativas, subjetividade, ativismo com a primeira curadora indígena de artes do Brasil.

A primeira vez que escutei a voz de Sandra Benites foi em 2017, durante uma roda de conversa sobre “Mulheres indígenas na cidade” na Mostra Corpos da Terra, na Caixa Cultura do Rio de Janeiro. Diante de uma plateia majoritariamente branca e urbana, Sandra, a estilista e artesã Maria do Socorro Borges e a artista Salissa Rosa falavam de seus afetos, forças e torções para pisar na cidade enquanto mulheres e indígenas. Um caminho árduo e nada convidativo do qual Sandra – mulher, mãe, Guarani nhandewa – falava de forma direta e clara, a partir de suas relações com a cidade através da experiência corporal e das narrativas das mulheres guarani.

Foto: Ricardo Guerreiro.


No ano seguinte nos reencontramos, agora como colegas nas aulas do Museu Nacional/UFRJ. Doutorandas em diferentes programas de pós-graduação, compartilhávamos percepções com uma diversidade de outras/os alunas/os indígenas e não-indígenas a cada texto debatido. Consequências felizes das políticas afirmativas e de acesso à educação alcançadas durante o governo Lula junto aos movimentos de lutas sociais que abriram espaço para essas vozes repercutirem de dentro das universidades, protagonizando e contribuindo na direção de uma descolonização destes espaços.

Mestra e doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ, Sandra realizou a curadoria da exposição Dja Guata Porã no MAR (Museu de Arte do Rio) em 2017, junto a José Ribamar Bessa, Pablo Lafuente e Clarissa Diniz. E desde 2019, ela é a primeira mulher indígena curadora do MASP. Nesta entrevista inédita para a Tucum, Sandra conta um pouco sobre seu caminho entre mundos, pisando dos dois lados simultaneamente com firmeza e sabedoria.


T: Como é ser curadora em um dos maiores museus de arte moderna do Brasil, sendo o museu um lugar “tradicionalmente” branco?

Sandra: Eu comecei a entrar naquele museu só em 2017, quando fui convidada para dar uma palestra sobre a minha experiência de curadoria no Museu de Arte do Rio na exposição do Dja Guata Porã. Essa foi a primeira vez que eu entrei no Masp. A última vez foi em novembro de 2019, um pouco antes de ser convidada como curadora de lá. Primeiro que é um desafio muito grande, é muito estranho na verdade. A forma de pensar e a forma de estar. É tudo ainda muito novo para mim. Eu tenho outra perspectiva sobre o meu “ser curadora de arte”, primeiro eu penso a sociedade na qual eu me identifico como indígena e depois eu penso também como mulher, e como é que a gente leva isso para um espaço como o Masp, com muitas visitas diárias. Como eu me coloco diante dessa visão dos brancos? Eu tenho feito muitas conversas e trabalhos em parceria com não-indígenas e indígenas que me encorajam a estar lá e me posicionar, falando o que eu penso, enquanto mulher indígena. Eu percebo que estes diálogos são uma provocação para uma negociação deste espaço e como estes juruá (não-indígenas), curadores com outros ponto de vista, podem me apoiar para que a gente transforme a perspectiva indígena em uma provocação em forma de exposição com o objetivo que estes visitantes entendam e saibam que os indígenas existem. Acho que ainda hoje os indígenas são invisíveis, e a sociedade brasileira ainda sabe muito pouco, e quando sabem tem um pensamento distorcido ou romantizado, pensam que nós não existimos mais. Mas nós também estamos no meio da sociedade juruá, estudando, lutando, como artistas, como acadêmicos, como profissionais em várias áreas. Estamos circulando entre os juruá, então a gente também busca entender como nós podemos chegar e conversar. Essa é uma tarefa muito difícil, temos que fazer muito esforço, ao contrário dos juruá. Parece que nós indígenas temos que fazer um esforço dobrado para levar esse diálogo, para desconstruir essa visão do branco. Esse é o meu pensamento sobre estar no Masp hoje em dia, para poder pensar junto e dizer até onde cada um pode se ajudar para que de fato a gente descolonize esses espaços como o museu, um espaço que sempre foi pensado por brancos, por colonizadores, e não por nós enquanto indígenas, enquanto nativos, enquanto pensamento e perspectivas que são diferentes da sociedade juruá.

T: Como você enxerga o movimento das mulheres indígenas atualmente?

O movimento das mulheres hoje se fortalece a partir do momento em que existem várias mulheres que quebraram esse padrão e essa força, né? Porque não é fácil sair de uma aldeia e ir estudar, ir pra reunião, viajar pra longe, pra falar, porque nós temos os nossos filhos, a nossa família e o nosso modo de vida diferente da cidade. E nós temos que deixar nossos filhos, não porque não queremos levar nossos filhos, mas muitas vezes somos obrigadas a deixar nossos filhos para poder ir para esses outros lugares, e isso não é uma tarefa fácil. Mas muitas mulheres fizeram isso para de fato expor a sua opinião, para falar sobre a nossa necessidade específica enquanto mulher, enquanto mãe. Não que as lideranças homens não falem sobre, mas nós precisamos falar. E por isso muitas mulheres tiveram que atravessar e desafiar essas formas de pensar de que as mulheres geralmente têm medo. Por exemplo, quando os homens viajam pra fora eles têm mais facilidade em dormir em qualquer lugar, ou ficar em um lugar que às vezes não é adequado, arriscando a sua própria vida, como Galdino Pataxó, que foi queimado enquanto dormia na rua. Muito triste. E hoje eu acredito que nós temos mais apoio com outras mulheres, com outras instituições que apoiam a gente, como a academia ou outros órgãos que nos acolhem pra gente sair da aldeia e ir para outros lugares. Essas primeiras mulheres indígenas que saíram, enfrentando esses espaços acadêmicos, como escritoras, como artistas, como lideranças, como professoras, chamaram esse movimento dos encontros de formação de professoras, para debates sobre educação e por aí vai. O movimento das mulheres indígenas é um processo histórico, embora ainda pequeno, é importante que elas estejam lá falando sobre as suas necessidades específicas. Sobre as demandas das mulheres, das parteiras, das mães, das mais jovens. E quem vai falar sobre essas demandas somos nós mulheres, que temos outro modo de pensar e de se organizar. Não que os homens não falem, mas é necessário que as mulheres e os homens estejam juntos na luta, falando de suas demandas específicas dentro das próprias comunidades. Por isso eu acredito que esse movimento das mulheres indígenas que hoje está organizado dentro da sociedade juruá é muito importante e necessário, porque todas estão falando sobre as necessidades desse modo de ser para os brancos.

T: O movimento indígena tem trazido a palavra “reexistência” ou “rexistência” como uma das bandeiras de luta. Queria saber o que é para você essa palavra, sendo uma mulher indígena no Brasil de 2021.

Eu não sei exatamente o que é, não sei como eu traduziria isso para a minha língua guarani. Mas na verdade, talvez eu diria que essas mulheres que eu falei, que quebram os seus medos, que colocam isso como desafio, que vão estudar, falar e se posicionar eu diria que são mulheres com sentimento de coragem. Coragem em vários âmbitos e aspectos. Coragem de sair do seu lugar, que conhece, para um desconhecido, sem saber como vai ser recebida nesses espaços. Tem que ter esse sentimento de coragem. Seria então coragem e espírito de força. Porque são mulheres que não só enfrentam o seu inimigo, mas também enfrentam o seu próprio desafio, a sua própria demanda, o seu próprio sentimento de deixar seus parentes para se impor e falar. Isso não é fácil. A gente tem que se reinventar nesse sentido, de enfrentar e de ocupar esses novos espaços.

Sandra na apresentação da exposição Dja Guata Porã, no MAR.



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Referências:

http://museudeartedorio.org.br/programacao/dja-guata-pora-rio-de-janeiro-indigena/

Benites, Sandra. Viver na língua Guarani Nhandewa (mulher falando). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018, Cap. 3, Sentimentos, corporalidades e diferenças entre homens e mulheres, p. 64-91.