Numa conversa informal durante os dias em que estivemos em terras Yawanawa, enquanto ensinava um grupo de mulheres um novo modelo de colar, a pajé Hushahu nos contou que foi através das mirações e sonhos trazidos pela força do Uni que ela recebeu os ‘kenes’ (grafismos) sagrados de seus ancestrais. Inicialmente, ela os materializava através da pintura corporal e desenhava em papel; mais tarde aprendeu a tecê-los em miçangas. Assim, se dava o encontro perfeito dos ‘kenes’ e as coloridas miçangas de vidro. Desta união é que surgem as lindas e poderosas joias da floresta. Este conhecimento foi sendo compartilhado com as demais mulheres, que aprenderam a reverenciar e reproduzir cada um dos ‘kenes’ sagrados que Hushahu recebia pela força.
‘Raotí’, com um erre bem tremido na ponta da língua, significa “adorno” na língua Yawanawa. Os raotís de miçangas que trazem os ‘kenes’ sagrados tem sido muito importantes na história recente de resgate e resiliência da cultura deste povo: a medida em que as mulheres retomaram as atividades artesanais, passaram a reunir-se para compartilharem histórias dos tempos antigos e conhecimentos ancestrais enquanto tecem as miçangas.
Hoje, os raotís de miçangas – pulseiras, tornozeleiras, tiaras, colares, embelezam todo o povo Yawanawá e compõem uma fonte de renda para dezenas de mulheres, que até pouco tempo, dependiam de programas sociais do Governo para comprar alimentos, roupas e remédios para suas famílias. Julia Yawanawá, irmã da Pajé Hushahu, é uma das responsáveis pelo surgimento do empreendimento social das mulheres Yawanawá, a Rautihu.
Perspicaz, Julia percebeu que era preciso criar uma estrutura para que o trabalho delas tivesse mais força. Com o apoio da ONG Forest Trends, parceira antiga em outros projetos, Julia abriu a primeira cantina do rio Gregório. A cantina funciona como uma espécie de mercadinho de troca onde as mulheres levam os ‘raotís’ e trocam por arroz, macarrão, café, açúcar, sabão, bolacha, pilhas e MIÇANGAS! Antes da cantina Rautihu, as mulheres tinham que ir até a cidade ou esperar a época das festas, quando recebem visitantes, para vender seu trabalho e só assim comprar itens de necessidade básica.
O empreendimento Rautihu, liderado pela Julia, é coletivo e pertence à artesãs cadastradas que estão espalhadas pelas oito aldeias Yawanawá do rio Gregório. São elas: Matrinxã, Yawarani, Sete Estrela, Tibúrcio, Escondido, Amparo, Nova Esperança e Mutum. Além de coordenar a atividade, Julia vai em busca de novos parceiros e compradores para que a Rautihu cresça e possa, de forma sustentável, gerar renda para cada vez mais artesãs.
Em 2015, a Tucum iniciou uma parceira comercial com a Rautihu, revendendo suas joias em nosso site e fornecendo miçangas a preço de custo para as artesãs. Através desta parceria surgiu o convite da ONG Forest Trends para que a Tucum assessore este empreendimento social na gestão financeira e na construção de um plano de negócios, para que as mulheres Yawanawá tenham cada vez mais autonomia e a Rautihu mais força!
Para dar inicio ao projeto de empoderamento e gestão do empreendimento social das mulheres Yawanawá, a Tucum fez, no final de junho, a primeira expedição ao rio Gregório. Foram intensos dias na Aldeia Mutum, onde conhecemos de perto a artesãs representantes de cada aldeia, a cantina Rautihu e pudemos perceber como o negócio estava estruturado. Umas das atividades mais importantes realizadas neste primeiro encontro foi a precificação participativa dos ‘raotís’. As artesãs decidiram por quanto a cantina vai comprar seu trabalho e por qual valor a cantina revenderá as joias no varejo e no atacado. As miçangas, matéria-prima fundamental, são vendidas ou trocadas na cantina e seu valor de venda também foi decidido coletivamente pelas artesãs. Esta decisão deixou as mulheres muito contentes, o preço da miçanga ficou mais barato para as artesãs filiadas a Rautihu, e se antes elas compravam uma colher(30g) por R$10, agora elas vão pagar R$6 pela mesma colher.
A Aldeia Mutum, sede da primeira cantina Rautihu, fica localizada mais no alto da Terra Indígena. Devido a distância, as artesãs de aldeias que vivem rio abaixo sentiram a necessidade de criar uma segunda cantina na Aldeia Amparo, que está no meio do caminho entre o porto de São Vicente, vilarejo à beira da BR-364 e a Mutum. A Forest Trends, da mesma forma que fez com a cantina Rautihu-Mutum, vai fornecer o capital de giro para que a cantina Rautihu-Amparo possa comprar mercadorias e miçangas para começar as trocas dos ‘raotís’ com as artesãs que vivem nas proximidades.
Com o surgimento de uma “filial”, o negócio ganha maior complexidade e necessita de mais controle para que continue sustentável e bem sucedido. No intuito de facilitar esta gestão, cada cantina terá uma gerente (Janete no Mutum e Alderina no Amparo), e Julia fará a coordenação das duas cantinas. Estas três mulheres formam um trio potente e juntas serão o motor deste negócio, que vai receber todo o apoio da Tucum para realizarem o controle do negócio, que pertence a todas as artesãs, de uma forma transparente e próspera.
Como parte da atividade de gestão, a Tucum comprou parte da produção Rautihu, podendo acompanhar de perto como é feita a troca dos ‘raotís’ por mercadoria, miçangas e dinheiro. A artesã escolhe o que precisa e a cantina recebe os artesanatos que serão revendidos.
Também tivemos a oportunidade de conversar com as artesãs sobre o panorama da arte indígena brasileira. Contamos um pouco da nossa experiência com outras etnias e com o público nacional e internacional, que através da Tucum tem visto o trabalho dos povos da floresta sob uma nova perspectiva: da arte e do design sustentável. É assim que a sociedade vai aos poucos, percebendo além da beleza, o valor socioambiental que cada produto carrega.
Estamos muito contentes e somos gratos às artesãs que nos receberam com tanto carinho, alegria e dedicação! Agradecemos a FT pela oportunidade e em especial a Mariazinha Yawanawá, cacique da Aldeida Mutum e ao Tashka Peshaho Yawanawa, presidente da ASCY Associação Sociocultural Yawanawa, por nos receberem na sua comunidade e possibilitarem a realização do trabalho.